Ratazanas e Calendáriospt
Na noite de eleições, um casal de ratazanas invade a sala de estar onde todos esperam pelos resultados finais. O cenário é desesperadamente negro e, para afastar os demónios, Jane Doe tenta afastar os bichos à vassourada. Falha e passa a vassoura a Jules Doe que, obtendo os mesmos resultados, passa-a a Joe Doe. Em vão. Ao longe o som de breaking news invade a sala. Mais três ratazanas se juntam e Joe tenta, esbaforido, afastá-las. Josh e Anna juntam-se a ele mas os resultados não melhoram. Jane ainda consegue de raspão tocar na quinta ratazana, mas sem o sucesso pretendido. As criaturas estão em alvoroço no lado direito do sofá vermelho e vão saindo de cena em movimentos de celebração enquanto Marianne e Andreas procuram quietar a raiva da auto-intitulada família Does. Com sucesso, a raiva foi reprimida e as atazanantes criaturas saem de cena.
Oito pessoas vivem juntas. Todas construíram os seus quartos. Quando a oitava pessoa entrou, também ela teve de construir um quarto. Ao levantar a última parede, a oitava pessoa cede e cai. A parede cai de seguida, amortecendo a queda sobre a oitava pessoa. Ao ouvir um estrondo, a sétima pessoa vem ver o que se passa mas, ao levantar a parede, cai e a parede, caindo, amortece a queda sobre ela. Uma sexta e uma quinta personagem entram em cena para levantar a parede, mas caem e a parede amortece a queda sobre eles. À medida que os restantes chegam, o processo repete-se, ao mesmo tempo que os primeiros a cair se começam a levantar. Às vezes dois, outras vezes três, depois quatro, cinco, seis, sete tentam levantar juntos a parede, mas esta cai sempre e todas as vezes amortece a queda sobre eles. Quando os oito tentam, todos juntos e de um só trago, levantar a parede o mesmo acontece - sobre eles cai a parede. Ao levantarem as cabeças, após a queda, um grupo de ratazanas lixotadas dançava ao som dos seus gemidos.
Alguém caiu numa ratoeira ao aterrar no jardim do prédio of a secret lover.
Nos anos da crise, Manuela arranjou um gato, Smokey, para lhe fazer companhia nas noites frias e protegê-la de roedores indesejáveis. Com o desvanecer desses anos, Smokey foi-se habituando a uma vida melhor e mais pachorrenta. Um dia, quando nada o fazia esperar, Ritaz Ana apareceu. Acercando-se de Smokey, atacou-o, para depois de o imobilizar se deliciar com uma série de pequenas torturas levadas a cabo na pança peluda do gato persa de Manuela. Uma vingança que só acabou quando Manuela, ao chegar, exclamou: “Uuuuuuuuuuu…*****”. Ritaz Ana, com a sua pelugem listada, e as pernas delgadas de uma ratazana mais experiente hoje do que outrora, pôs-se em fuga, consciente de que o terror tinha sido semeado.
É verão e ao anoitecer Jane e Joe Doe descem a Rua do Norte rumo ao parque escondido. Na distração de passarem a garrafa que traziam um ao outro, Joe descuida-se e ouve-se um “ihhhhhh” agudo e inquietante. Ao olhar para baixo, vê uma pequena ratazana a fugir desenfreadamente. Joe percebe o que era o corpo esponjoso que tinha acabado de calcar, enquanto Jane se encontra petrificada com uma expressão de “aaeewwwww”.
Na casa, os oito discutem os termos em que se realizará a próxima festa. Todos estão de acordo à excepção de Roberto que, num calor crescente, vai expondo as suas razões para se opor à celebração ilimitada proposta por todos os outros. Igor, Jane, Marie, Josh e Anna rebatem e refutam os argumentos de Roberto. A disputa dura vários minutos num registo digno de jogo de ténis ou de rave, em que as cabeças balanceiam de um lado para o outro. Roberto tem o sangue todo a subir à cabeça e, por esta altura, dá um murro na mesa. Azar o dele que quando se vira de costas para abandonar a assembleia pisa a Eletrónico Vítor Armadilha Para Ratos e fica com o pé eletrocutado. Sorte dos outros sete, que ele não estava em casa quando a festa aconteceu.
Lipa, uma fanática de jogos de guerra virtuais, foi um dia interrompida numa das suas missões por uns ventos que já há algum tempo habitavam o nojo em que o seu quarto suburbano se tinha tornado. Ao desviar a sua atenção para estes ruídos por breves segundos, quando voltou ao jogo já levava com três balas em cima e um enxoval delas ainda estava por vir. Perante a inevitabilidade do fim, Lipa possuída pela raiva da traição e o desespero da desconcentração disparou o teclado contra a parede gritando em suplício: “u damn raaaaatssszzzzz”.
Certo ano, Mar foi tendo alguns problemas com os dias compreendidos entre 12 e 16 de cada mês. Havia sempre dois ou três que lhe escapavam. Todos os dias quando acordava, consultava o calendário que tinha na cozinha e, folha após folha, mês após mês, a falha mantinha-se. Mar atrapalhava-se sem perceber como era possível que nesses 7 meses a brincadeira se repetisse ininterruptamente. Apesar de fácil, a explicação não é de todo óbvia.
No dia em que Jane lhe oferecera o calendário, e depois de folhearem meia dúzia de páginas, abandonaram-no na banca da cozinha sobre a saca do pão. De noite, quando Augusto chegou a casa, vindo de uma noitada, dirigiu-se à cozinha e, vindo de uma noitada, ao ligar a luz, vindo de uma noitada, viu duas manchas, vindas de uma noitada, a descer o cabo da vassoura, vinda de uma noitada. Meio atordoado, desligou a luz, agiu como se nada se tivesse passado e, no esquecimento do acontecimento, foi dormir. De manhã, ao preparar o pequeno almoço, reparou que a saca do pão tinha dois buracos, tal como o pão tinha dois buracos, tal como o calendário tinha dois buracos. De rompante, um flashback da noite anterior e zááááás: dupla ratazana.
Pedro Huet com Sara Graça
Texto escrito para a exposição Ratazanas e Calendários de Sara Graça, Sismógrafo, Março 2020.