EMPIRE 2020pt
Ao longo de seis horas e meia de uma noite quente do Dubai, o duo artístico Invernomuto filmou o edifício mais alto do mundo. Ali vemos as mudanças impostas pela luminosidade do céu, pautadas pelas luzes que nos prédios se vão acendendo e apagando com o passar do tempo. Esta imagem retrata o Burj Khalifa – um chamariz construído para atrair todos os que queiram presenciar a sua imponência. EMPIRE 2020 é, em certa medida, um cartão-postal de um edifício que, na sua configuração, é ele próprio um postal daquele lugar e de um mundo onde o capitalismo tardio impera. É uma imagem altamente definida dum símbolo do prestígio e poder das elites daquele território.
EMPIRE 2020 é um remake de EMPIRE, de Andy Warhol, filmado em 1965. Warhol, com a ajuda de John Palmer, Jonas Mekas e outros, enquadrou o topo do Empire State Building e filmou-o ininterruptamente durante seis horas e meia. Tanto Warhol, como os Invernomuto acabaram por reduzir a velocidade das suas filmagens para que os filmes chegassem à duração final de oito horas e cinco minutos.
Entre outras questões, os dois arranha-céus partilham o facto de terem sido filmados no momento em que eram considerados os edifícios mais altos alguma vez construídos. Os dois tornaram-se fundamentais para o imaginário de cada uma das cidades onde foram erguidos e são símbolos tanto dessas sociedades como desses tempos. Numa conferência recente no MIT Architecture, intitulada “Building and Bildung und Blackness”, Fred Moten aborda a homofonia destas duas palavras — Building e Bildung — para reflectir sobre como a arquitectura e as suas lógicas de projecto podem ser vistas como formas de auto-imagem. Como se, para nos conhecermos e reconhecermos, precisássemos de uma imagem nossa. Estas duas imagens, estes dois prédios — Empire State Building e Burj Khalifa — estão intrinsecamente ligados a este projecto de construção de uma auto-imagem. Um plano arquitectónico sobre como uma sociedade, ou sociedades, se vêem. Um projeto urbanístico em direção ao céu que molda o imaginário que detemos de ambas as cidades e que condiciona o que podemos esperar delas. Os arranha-céus tornaram-se como que flechas da arquitectura e do planeamento urbano, “coisas de heróis,” como diz Peter Cook. É na brutal verticalidade destas estruturas que reside o seu significado e a sua mensagem primordial. São monumentais porque é assim que uma sociedade deve ser: poderosa, forte, memorável, capaz de todos seduzir. Partem desta lógica para ganhar forma, sugando a atenção de todos, desde o chão, onde estão sedimentados, até ao topo.
A forma como estas estruturas arquitectónicas se impõem na horizontalidade de uma paisagem denota o seu poder e a visão falocêntrica da sociedade que as propõe. São estruturas verticais, em vistas predominantemente horizontais, pensadas para serem escaladas até ao topo. São uma referência ao eterno sonho de alcançar o céu e, sobretudo, são percepcionadas pela maioria como algo intangível, que apenas vemos habitado em filmes ou séries de televisão. Representam o poder económico inalcançável, mas ainda assim existem para serem contempladas, para nos fazerem sonhar, enquanto representação da realização última do sonho capitalista.
É na presente inacessibilidade destas estruturas que interagimos com elas. São inatingíveis, mas a sua presença é constante, assumindo-se como um fantasma de que não nos conseguimos livrar. Ambos os filmes replicam isso e trazem com eles a miragem que estes edifícios são. As oito horas de duração destes filmes é a média de horas de trabalho diárias em grande parte do mundo; são demasiadas horas para olhar para algo sem sequer desviar o olhar e, se o fizermos, aquelas imagens ainda lá estarão. E ainda estarão aqui, no Sismógrafo, quando olharmos de volta. E como os Invernomuto naquela noite, não chegaremos lá. Ainda assim, há uma certa poética sensação de paz vertical na ideia de assistirmos a um só plano, fixo, durante todo aquele tempo, e nele contemplarmos as nuances que a luz provoca. Aí, nessa longa maratona, olhamos frontalmente uma representação da sociedade. EMPIRE 2020 pede que nos deitemos e observemos este filme.
Em oposição ao filme mudo de Warhol, EMPIRE 2020 é acompanhado por uma longa, meditativa e generativa banda sonora, que se serve do algoritmo de Black Med para criar um fluxo contínuo de som. Black Med é uma plataforma na qual os artistas têm vindo a trabalhar desde 2018 que procura reflectir sobre a crise humanitária e sobre as tensões e disputas geopolíticas que assombram o Mar Mediterrâneo, através de trilhos sonoros deixados pelas migrações que, nas palavras de Iain Chambers, “resistem à representação e propõem uma economia afectiva [que é] intrinsecamente diaspórica”. Para EMPIRE 2020, Simone Bertuzzi e Simone Trabucchi viajaram pelos desertos do Médio Oriente, expandindo o projecto num desvio pelo Golfo Pérsico — um local com intensas rotas migratórias, onde as condições laborais para trabalhadores da construção civil são para lá de precárias.
Texto escrito para a exposição EMPIRE 2020 de Invernomuto, Sismógrafo, Junho 2022.